Espanha: Quando A Mala Decidiu Ficar no Aeroporto

Mala, Cuia e Causos

Se dizem que bagagem tem história, então a minha merece um livro só dela – especialmente depois de sua aventura solo pela Espanha! Aqui é Zeca Brasil e nós vamos para Europa hoje.

Esta é a crônica de uma mala que, com toda a teimosia do mundo, decidiu ficar na Espanha enquanto seu dono embarcava para Paris.

Não era uma mala de grife. Nem mesmo uma dessas com tecnologia que segue o dono pelo aeroporto ou tranca com biometria.

Mas tinha personalidade – e isso conta muito numa mala, especialmente quando se está viajando sozinho, com ela como única companhia fiel, guardiã de todas as suas roupas e, convenhamos, de um pouco de sua dignidade.

A mala, de rodinhas barulhentas e laterais rígidas, já havia atravessado mais países do que eu, com mais carimbos na sua memória de zíper do que eu jamais conseguiria na vida real.

Ah, e seu vermelho desbotado quase gritava: “Sou única!” Mal sabia eu que o destino nos reservaria uma daquelas situações que viram lenda de família, passada nas reuniões entre risadas e “conta de novo!”.

Pessoas com mala de rodinhas no interior da T4 do aeroporto de Madri.
Interior da T4 do aeroporto de Madri. Foto Bene Riobó.

O Último Café em Madri

Chegamos a Madri já há três dias, e a mala parecia feliz. De fato, fazia até sentido. Naquela cidade de cores vivas e cheiros de especiarias, ela já estava ambientada.

Percorremos as vielas de Lavapiés, nos encantamos com o Prado e, claro, tomamos nossos cafés sem pressa alguma. Era como se Madri nos tivesse recebido de braços abertos – a mim e à minha fiel escudeira de zíper torto.

Enquanto terminava meu último café, olhei para a mala ao meu lado, quase esperando que ela também suspirasse. Era como se aquele pedaço de Madri tivesse entrado nela, misturando o aroma de cafés fortes e a poeira das calçadas movimentadas.

Talvez fosse exagero, mas havia uma certa cumplicidade no ar. Naquele curto espaço de três dias, minha mala e eu formamos uma equipe afinada: ela aguentava firme as ladeiras e o chão de paralelepípedos, enquanto eu me encantava com cada esquina, cada praça e cada detalhe da cidade.

Mas Paris nos chamava, e era hora de seguir viagem – ou pelo menos assim pensei, sem desconfiar que a história estava longe de ser tão simples.

No entanto, como tudo que é bom dura pouco, nosso próximo destino era Paris. Em uma dessas manhãs de despedida, entre um café e um churro, resolvi checar os voos e preparar a mala para a próxima aventura.

Com uma última olhada em Madri e um suspiro de “nos vemos em breve”, partimos rumo ao aeroporto.

Foi aí que a coisa começou.

O Encontro com a Esteira Rebelde

Ao chegar no aeroporto de Barajas, tudo parecia normal, ou pelo menos até o ponto em que despachei minha amiga de tantas viagens. “Cuide dela”, falei para o atendente, enquanto ele me lançava um olhar indiferente, como quem diz: “Sim, sim, amigo. Aqui elas são todas iguais.” Mal sabia ele que essa mala não era uma qualquer; ela tinha personalidade! Mas de nada adiantou o meu apelo.

No momento em que vi a mala desaparecer na boca daquela esteira rolante, senti um friozinho na barriga, como se ela estivesse entrando em território desconhecido, uma zona de ninguém.

A esteira parecia mais sinistra do que de costume, com um ruído baixo e metálico que me fez questionar, por um segundo, se aquilo era mesmo uma boa ideia. “Nos vemos logo, amiga”, pensei, meio dramático, enquanto seguia rumo ao portão de embarque, tentando não olhar para trás.

Assim que passei pelo embarque, me virei uma última vez para ver minha companheira de viagens sumir na boca daquela esteira rolante, que parecia engolir sonhos e esperanças.

Já sentado no avião, em um assento desconfortável com cheiro de amendoim, imaginei que em poucas horas estaríamos juntos novamente, na França.

Ah, como eu estava enganado!

O Primeiro Suspeita – Paris sem a Mala

Cheguei em Paris cheio de expectativas, com a sensação de que minha fiel escudeira viria atrás de mim com as rodinhas ainda mais vibrantes.

Dirigi-me à esteira, impaciente, como um detetive de filme noir à espera da prova final que encerraria o caso. Cada mala que passava por mim era um lembrete da ausência da minha própria. Uma após outra, todas encontravam seus donos, mas a minha… nada.

Um frio percorreu minha espinha, e eu tentei conter o pânico. Fui direto ao balcão de achados e perdidos. “A minha mala… ela é vermelha, de tamanho médio, um pouco arranhada nas laterais… Passaporte espanhol, etiqueta verde… E ela é única, claro!”, disse, tentando não parecer tão desesperado. “Está provavelmente perdida em algum canto de Charles de Gaulle, certo?”

O atendente ergueu o olhar com aquele meio sorriso misterioso, como se soubesse mais do que estava disposto a compartilhar. “Monsieur, sua mala não está em Paris.” As palavras bateram em mim como um vendaval.

A Revelação – Uma Mala Solitária em Madrid

A notícia veio rápida e confusa: minha mala tinha decidido ficar em Madri. Como um turista teimoso que não quer deixar o conforto do hotel, lá estava ela, parada no terminal de onde havia sido despachada.

As razões? “Problemas de sistema,” disseram. Mas, para mim, parecia mais uma decisão dela do que um erro técnico.

Agora, cá estou eu, em Paris, com o frio na espinha e uma leve desesperança por não ter meu kit de primeiros socorros pessoais – meu carregador, meu desodorante e, é claro, todas as minhas roupas! Ali estava eu, em plena Cidade das Luzes, sem nada além da roupa do corpo e um cartão de crédito.

Por um momento, cogitei voltar à Espanha para buscá-la, mas já estava claro que ela queria um tempo a mais para curtir o cenário espanhol. “Ah, como assim? Uma mala que tira férias?”, pensei, entre risos e soluços.

Fotografia em perspectiva da arquitetura do Terminal 4S, Aeroporto de Barajas, Madri.
A bendita mala tinha decidido ficar no Aeroporto de Barajas, em Madri. Foto Diego Delso.

O Plano B – Explorando Paris sem Ela

Como quem se rende a um capricho do destino, resolvi viver a experiência de uma viagem sem malas. Foi como experimentar uma liberdade que poucos turistas conhecem. Saí para explorar Paris, levando apenas o essencial: passaporte, carteira e, ironicamente, a chave do cadeado que ainda prendia o zíper da minha mala… na Espanha.

A primeira parada foi uma loja de conveniências. Comprei o mínimo necessário para sobreviver – uma camisa nova e um par de meias.

À medida que caminhava pelas margens do Sena, notei como minha atenção estava mais afiada, e talvez, pela primeira vez, vi Paris com olhos destemidos.

A ausência da mala, com todos os seus pertences, me fez perceber que eu podia me virar com muito menos do que imaginava.

Mas, claro, não podia escapar das risadas quando, ao contar para alguns amigos parisienses sobre o paradeiro da minha mala, eles reagiam com uma descrença divertida. “Elle reste en Espagne?” Sim, ela ficou na Espanha, curtindo a siesta enquanto eu desbravava a França com os sapatos já desgastados.

O Retorno da Mala Viajante

Três dias se passaram e, embora já estivesse completamente adaptado à vida sem minha mala, eis que ela reaparece, enviada por algum serviço de entregas misterioso e cansado, com uma leve camada de poeira que me fez rir. Ela parecia desgastada, como alguém que teve uma longa e intensa aventura.

O entregador, ao me entregar o pacote, parecia intrigado, como se estivesse devolvendo uma caixa de segredos. Dei um sorriso para ele, mas, quando abri a mala, foi como reencontrar uma velha amiga cheia de histórias para contar.

As marcas de arranhões, o tecido meio amassado e até o zíper agora rangendo me deram a sensação de que ela havia vivido mais nos últimos dias do que eu em toda a viagem.

Quando finalmente abri o zíper, quase pude ouvir um suspiro de alívio, como se ela estivesse se entregando a mim após uma jornada épica.

Suas laterais vinham arranhadas, a etiqueta já começava a se soltar e, curiosamente, uma nova marca – um adesivo de “espanhol” na lateral, lembrando a mim e a todos que aquela mala nunca pertenceu a lugar algum que não fosse o mundo.

Como uma Mala Mudou Minha Perspectiva

Após tantas idas e vindas, descobri que essa viagem me deu algo mais do que apenas boas risadas e histórias para contar.

Entendi que, assim como a mala, temos o direito de fazer pausas, de ficar onde queremos e de desacelerar quando necessário. Enquanto eu corria para conhecer cada ponto turístico de Paris, minha mala relaxava na Espanha, lembrando-me de que às vezes o verdadeiro luxo está em permitir-se parar e contemplar.

Afinal, ao final daquela jornada meio atrapalhada e cheia de reviravoltas, percebi que minha conexão com a mala era mais que material; ela representava todas as partes de mim que eu, talvez sem perceber, deixava de lado em nome da pressa e da rotina.

Ela ficou para trás, sim, mas também para me ensinar que nem tudo precisa ser feito no ritmo frenético que a gente impõe às coisas. Às vezes, a melhor forma de viver a viagem é deixar que ela nos conduza.

Aquela viagem foi marcada pela ausência de um objeto que, em sua simplicidade, guardava um universo inteiro de significados.

Minha mala rebelde tornou-se minha guia, ensinando-me que até as melhores aventuras trazem consigo reviravoltas. E, como todo bom causo, terminou com a mala – e o dono – reunidos, com uma boa história para contar.

Agora, se alguém ainda duvida, fica o convite: venha comigo e com a mala na próxima viagem. Quem sabe você também não ganha uma história dessas? 😀

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